terça-feira, 1 de maio de 2018

Santarém num belo mês de Maio… Há Quase Nove Séculos.

“Lendas de Portugal”, de Gentil Marques, não é obra que se compare com “Lendas e Narrativas”, de Alexandre Herculano. Mas tem o seu interesse. Por exemplo, esta “Lenda da Fundação do Mosteiro de Alcobaça” mostra bem (mesmo se o autor não se apercebeu disso…) como, desde os primórdios, Portugal é obra de uma conseguida combinação de serviços de inteligência, operações especiais e alto discernimento estratégico e político. Quando essa combinação não consegue impor-se, o País cai na “apagada e vil tristeza” que já Camões identificou nas décadas posteriores ao período dourado lançado por D. João II, após o desvirtuamento do quadro estratégico criado pelo “Príncipe Perfeito” e à substituição do seu pacto Monarquia-Povo pela aliança Alta Nobreza-Clero… O reinado de D. João II é, aliás, o momento em que a combinação de serviços de inteligência, operações especiais e alto discernimento estratégico e político terá tido, até hoje, o seu ponto mais alto e tão brilhante que até mudou o mundo. Herculano terá sido o primeiro dos historiadores portugueses a entrevê-lo… Mas, veja-se a “Lenda da Fundação do Mosteiro de Alcobaça”:


“Belo como Apolo chegou o mês de Maio, nesse ano de 1147. Trazia nos olhos o azul do firmamento e nos cabelos os reflexos dourados do Sol. E ao seu hálito profundo entregou-se a Terra, numa dádiva total. As plantas tenras, viçosas, sorriam à nascença, sorriso esperançoso desse Maio, cheio de pujança e cor. 

Todavia, nem tudo era prazer nesse pedaço de terra que Maio cobria agora com o seu manto primaveril. Junto ao grande oceano, um povo lutava. Um povo que era outra Primavera no seu alvorecer, ao tomar posse do seu cantinho: Portugal!

Vencendo a resistência que lhe opunham para entrar nos paços de Coimbra, Zuleiman, a moura renegada, conseguiu chegar à presença de D. Pedro Afonso, irmão do primeiro rei de Portugal. Olhou-a D. Pedro com mal disfarçado interesse e perguntou-lhe: 

— Que me queres?

Veio pronta, a resposta:

— Senhor! Sei que vosso irmão e rei de Portugal deseja conquistar Santarém.

Ironizou o cavaleiro:

— E que tens a contrapor? 



Mostrou-se humilde a jovem moura, sem contudo demonstrar timidez.

— Nada sou para que possa influenciar a vontade do vosso rei. Creio porém ser esta a melhor altura de atacar.

Admirou-se D. Pedro Afonso:

— Estamos num período de tréguas, bem o sabes.

Decidida, a jovem tornou:

— Pois seria bom rompê-las, e já!

D. Pedro Afonso mirou mais intensamente a expressão viva da sua interlocutora.

— Pretendes guiar um chefe como el-rei meu irmão?

Apressou-se a jovem a desculpar-se.

— Senhor, longe de mim tal ideia! No entanto, se quiserdes acreditar na minha sinceridade, garanto-vos que esta será a melhor altura de conquistar Santarém.

— Porquê?

— Porque o seu alcaide anda demasiadamente ocupado com negócios de amor.

— Mas a vigilância da parte dos vossos continua.

— Muito mais fraca. Do lado do poente, por exemplo, não ficam sentinelas de noite.

— Vejo-te bastante interessada em afastar de Coimbra o rei de Portugal para o colocar às portas de Santarém, onde estão os da tua raça...

A jovem moura olhou D. Pedro Afonso bem nos olhos e exclamou com veemência:

— Assim é, senhor! Desejo ardentemente que o vosso rei se apodere do castelo e expulse Muhamed!

— Vejo ódio nos teus olhos... Que te fez Muhamed?

— Julga-se invencível em todos os campos. Mas anseio por vê-lo desbaratado!

— Porquê, não me dirás?

A jovem moura desviou o olhar. A sua voz aveludou-se um pouco ao dizer:

— Amei Muhamed e com ele vim de Saragoça. Mas a glória de mandar subiu-lhe à cabeça. Quantas mulheres bonitas encontra, quantas lhe pertencem, sejam mouras ou cristãs! E eu fui esquecida, desprezada!

A voz arrastou-se-lhe mais. Falava agora entredentes.

— Riu-se de mim quanto tive a fraqueza de chorar, implorando-lhe um pouco de afeição!

Calou-se de súbito. Enterrava as unhas nas palmas das mãos. Mordia os lábios para não chorar. D. Pedro Afonso, apressou-se a quebrar esse silêncio.

— Compreendo o teu desespero...

Ela interrompeu-o, de novo violenta:

— Não podeis calcular a revolta que senti! Mas essa revolta curou-se. Hoje sou pelo rei de Portugal contra Muhamed! E desejo ardentemente esta batalha!

Tentou sorrir D. Pedro Afonso.

— Se amas como sabes odiar, Muhamed fez mal em desprezar-te... Mas não poderemos lançar o nosso exército numa aventura, só para satisfazer a tua ira!

— Não será aventura, se tudo for bem calculado. Conheço bem o castelo e o seu modo de defesa. Desejo ser guia na conquista de Santarém. Levarei os vossos homens pelo melhor ponto da muralha. E verei Muhamed derrotado, expulso, abatido o seu orgulho!

D. Pedro teve um sorriso mal disfarçado e perguntou:

— Já ouviste falar em Martim Mohab?

A jovem encarou de novo o irmão de D. Afonso Henriques. Depois semicerrou os olhos e declarou:

— Sim, Muhamed falou-me dele. Falou-me com raiva na voz. Ele está entre os vossos, não é verdade?

— Está. E também ele deseja com veemência a derrota de Muhamed. Todavia, não vê as coisas tão fáceis como tu as vês. Pensa que será necessária muita astúcia para conquistar Santarém.

— Pois empregai a astúcia! Se caírem sobre a cidadela enquanto duram as tréguas, será mais fácil conquistá-la.

— Estudarei a tua proposta.

— Mas o tempo urge, senhor! Agora sei eu que ele não vos espera!

— Falarei a el-rei meu irmão, descansa!

— E levar-me-eis convosco?

— Se formos sobre Santarém, avisar-te-ei do dia da nossa partida!
De costas para a paisagem que dos Paços de Coimbra se desfrutava, D. Afonso Henriques conversava com seu irmão D. Pedro Afonso.

— A ideia de romper as tréguas já me tinha ocorrido. Por essa razão enviei a Santarém Mem Ramires, para estudar as condições em que, de noite, deveríamos atacar.

— E qual foi a opinião dele?

— A mais favorável. Até me pediu para ser ele a subir aos muros e hastear o pendão real.

— Mas, se desfizerdes as tréguas, os mouros ficarão de sobreaviso.

— Decerto. Pedirei apenas três dias de rompimento. Mas só ao quarto me decidirei a partir.

— E quando marcais essa data?

D. Afonso Henriques sorriu com benevolência. A sua voz, habitualmente rude, adoçou-se levemente:

— Meu irmão, sabeis quanto vos estimo. Sois sempre o meu primeiro confidente. No entanto, desta vez não devereis saber para quando premedito o ataque a Santarém.

— Respeito a vossa vontade, Senhor. Mas decerto não podereis agir sozinho.

— Bastar-me-ão Mem Ramires, Fernando Peres e mais dois cavaleiros que ainda hei-de escolher.

D. Pedro Afonso corou.

— Senhor! Desejaria poder calar-me e curvar a cabeça à vossa vontade. Todavia, não consigo evitar uma pergunta, que peço me perdoeis.

— Dizei.

D. Pedro Afonso olhou de frente o irmão. A tristeza do seu olhar reflectia-se na sua voz.

— Porque falais de dois cavaleiros que ainda não escolhestes, pondo-me de parte? Terei tido a desgraça de vos desgostar, falando-vos em nome de uma jovem moura que nem sei quem é?

De novo a voz de D. Afonso Henriques soou macia:

— Esperava já o vosso reparo e apresso-me a esclarecer-vos. Quando falastes com essa jovem, prometeste-lhe avisá-la do dia e da hora em que cairíamos sobre Santarém. Ora eu não tenho nela a menor confiança. E como não desejo que um cavaleiro falte à sua promessa a uma dama, seja ela moura ou cristã, hei por bem conservar-vos na ignorância do dia e hora exacta desse ataque. Desse modo, ficarei eu em sossego, e vós tranquilo com a vossa honra de fidalgo.

Inclinou-se D. Pedro Afonso com o sorriso nos lábios.

— Compreendo-vos agora, Senhor meu irmão e meu rei. Compreendo-vos e agradeço-vos. Podeis dispor de mim como entenderdes!

Numa segunda-feira de sol claro, embora ainda pouco quente, saiu o rei de Portugal com o seu exército. Não tomou a estrada principal nem sabiam os seus homens, a excepção de três ou quatro cavaleiros, para onde iam nem para o que iam. Chegados que foram a meio caminho, mandou o rei fazer alto e esperar pela noite. E então, caminhando na treva, continuaram a avançar com o menor ruído possível. Esse exército quase fantasma vivia e movimentava-se de noite, para se esconder e descansar durante as horas de sol. Mas o sol veio surpreendê-los no alto da serra dos Albardos. Todo o corpo de exército fez alto, sob o comando do seu chefe. Então, distanciando-se, D. Afonso Hennques caiu de joelhos, elevou os olhos ao Céu e orou:

— Meu Deus! Dai-nos a alegria de vencermos mais esta batalha para maior glória do Vosso Nome e maior dilatação da nossa fé e da nossa terra!

Calou-se, de súbito. Alguém estava a seu lado. Voltou-se. Mas já D. Pedro Afonso se desculpava:

— Perdoai-me se vos interrompo, mas não quis deixar-vos tão isolado. E ao ver-vos orando surgiu-me a ideia de obterdes a vitória de Santarém por intermédio de S. Bernardo.

Sem se levantar, D. Afonso Henriques respondeu:

— Seguirei o vosso conselho, mas deixai-me só.

— Creio que não será conveniente…

— Afastai-vos então um pouco, mas vigiai para que não me interrompam.

— Assim farei, Senhor!

E olhando o largo horizonte que o rodeava, D. Pedro Afonso afastou-se, mas não para longe.

D. Afonso Henriques voltou a elevar o seu espírito ao Céu:

— Senhor meu Deus. Tudo o que parece impossível ao esforço dos homens, para Vós é fácil e claro. Pois dai-me forças e inteligência para levar a bom termo o empreendimento a que lancei mão, por intermédio de Vosso servo Bernardo. Se conseguir Santarém, prometo-Vos dar todas as terras que o meu olhar alcança deste monte, até ao mar! E nelas construirei um mosteiro da Ordem do Vosso servo Bernardo, para que o seu nome nele se perpetue! Daqui renuncio em Vossas mãos, para que nem eu nem os meus sucessores possamos nestas terras mandar, nem dotar outra coisa que não seja o mosteiro!

Foi na madrugada de sexta-feira, caminhando sempre de noite, que D. Afonso Henriques e os seus homens chegaram a Pernes. Aí chamou quatro dos seus cavaleiros e com eles continuou a avançar sobre a cidadela sarracena. Ao anoitecer, estavam junto de Santarém. Mas aí uma surpresa os aguardava. A muralha do lado do poente não estava desguarnecida. Duas sentinelas vigiavam. Foi então que o rei português chamou seu irmão D. Pedro Afonso para lhe dizer:

— Folgo por ter tomado a decisão de vos deixar na ignorância do dia e hora do ataque a Santarém. Se vos tivesse informado e a jovem moura fosse avisada, pensaria que teria sido por denúncia sua que postaram sentinelas em pontos da muralha até então desguarnecidos.

D. Pedro sorriu:

— Deus esteve comigo e convosco! Mas quem esperou até agora, também poderá aguardar que os guardas se deixem amolecer pelo sono.

— Tendes razão. Esperaremos.

Os passos cadenciados e prudentes dos homens de Afonso Henriques, caminhando no escuro, punham algo de estranho nessa noite que ficaria na história de Portugal. Dividido o corpo do exército, os homens espalharam-se, e um troço dirigiu-se à casa de um oleiro contígua ao castelo, por onde passou do telhado para as muralhas.

Mem Ramires segurou então uma escada, e vinte e cinco homens treparam por ela. O pendão real foi arvorado no topo. E cortando o silêncio da noite, a voz do rei levou aos sarracenos o seu grito de guerra. A confusão dentro dos muros foi enorme. D. Afonso continuava dando ordens:

— Quebrem os ferrolhos das portas! É preciso que entremos todos!

Mas não havia, dentro da muralha, instrumentos capazes de quebrarem esses ferrolhos. Então, alguém lançou de fora um malho de ferro. Os ferrolhos foram quebrados e os soldados de Afonso Henriques entraram em Santarém! O dia seguinte veio descobrir no campo o que as espadas cristãs tinham feito nos corpos dos sarracenos, nessa memorável noite de Primavera de 1147.

E o grandioso mosteiro de Alcobaça ergue-se agora a atestar o cumprimento de um voto do primeiro rei português, ao dar graças a Deus por mais uma porção de terra conquistada aos mouros para engrandecer o reino de Portugal!”

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