sexta-feira, 2 de outubro de 2020

China: O DDT que veio do outro lado do mundo


Estávamos nos finais de 2018, andavam os Portugueses atarefados para resolver as compras de Natal, quando o líder máximo chinês Xi resolveu vir também às compras a Lisboa. E assinar, de uma assentada, 19 “acordos de cooperação” que, como não escapou ao atento jornalista Bruno Faria Lopes da ‘Sábado’, “vão da cultura à ciência e da agroindústria ao comércio"... Estendendo-se, claro, por todo o mar destas “ocidentais praias lusitanas”. Vale a pena recordar o que BFL então escreveu e o que ele já tinha noticiado uns meses antes:

A China, os novos donos de Portugal

O presidente chinês, Xi Jinping, visita esta terça e quarta-feira Portugal para assinar um total de 19 acordos de cooperação.

Bruno Faria Lopes | Sábado | 04.12.2018

O presidente chinês realiza, esta terça e quarta-feira, uma visita de Estado a Portugal na qual se irá encontrar com Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa e Eduardo Ferro Rodrigues. Durante a estadia, Xi Jinping irá também assinar um total de 19 acordos de cooperação entre Portugal e China "em áreas que vão da cultura à ciência e da agroindústria ao comércio"

O interesse da China em Portugal e a influência do capital chinês nas principais empresas portuguesas cotadas na bolsa tem crescido nos últimos anos. Um exemplo disso é o megaprojecto chinês da Nova Rota da Seda - um investimento de mais de 800 mil milhões de euros em portos, estradas e ferrovia para ligar toda a Eurásia, tendo a China no centro.

Os novos donos de Portugal

 Bruno Faria Lopes | ‘Sábado’ | 05.04.2018 

 A influência do capital chinês não vai parar de aumentar. Quem já cá está quer comprar mais, há o interesse pela economia do mar e investidores a chegarem a todas as partes do país. Também há riscos – e uma estratégia chinesa para não levantar ondas.

 Desde a vaga de privatizações sob a troika que a China tem sido a cada ano o maior ou um dos maiores investidores na economia portuguesa. Portugal é o décimo no top 10 dos países onde a China mais investiu entre 2000 e 2017, segundo dados da consultora Baker & McKenzie, uma lista onde não há economias do tamanho da portuguesa.

 Somando os mais de 2.000 milhões de euros aplicados em imobiliário com os vistos gold, o investimento total sobe para cerca de 9 mil milhões, valor que faz de Portugal o segundo país europeu a seguir à Suíça (em que um só negócio de 46 mil milhões de euros distorce os números) em que o investimento chinês tem maior peso relativo na economia: quase 5% do PIB.

 Chineses e portugueses não dão mostras de quererem travar esta tendência. "O crescimento [do interesse] é de tal forma acelerado que todos os dias aparecem novos investidores", afirma o secretário de Estado para a Internacionalização, Eurico Brilhante Dias. A maior construtora chinesa abriu uma sucursal em Lisboa, várias delegações de províncias chinesas visitaram cidades como Lisboa, Viseu e Peso da Régua e o município da Guarda assinou um protocolo com a Câmara de Comércio Luso-Chinesa para atrair investimento chinês - e isto foi só em Março, mês em que também foi noticiado que o Estado chinês comprou mais 2% da EDP (tem agora 28,25%), que a Fosun comprou mais 2% do BCP (tem 27%) e que a Luz Saúde completou a compra do grupo de saúde Idealmed por 20 milhões de euros.

 Dos grandes e estratégicos aos pequenos

 Há três motores de expansão chinesa em Portugal. O primeiro é o das grandes empresas já instaladas em Portugal ou de olho em sectores estratégicos escolhidos a dedo: energia, banca, águas, saúde e seguros. Uma fonte chinesa na comunidade financeira aponta à SÁBADO que o que trava compras maiores neste momento não é tanto o controlo maior exercido por Pequim sobre a fúria aquisitiva de alguns conglomerados - como a Fosun e a HNA accionista da TAP -, mas a escassez de negócios com dimensão suficiente nos sectores em que os chineses já estão.

Miguel Farinha, sócio da consultora EY, que presta serviço a investidores da China, concorda. "Continuam interessados na energia, como as renováveis, no sector financeiro e em indústrias em que temos conhecimento específico", explica, adiantando (sem detalhar) que há mais operações em curso. O banco Efisa e os parques empresariais nos antigos terrenos da Lisnave (Baía do Tejo) estão na mira.

 Outro motor, estratégico e com potencial para aumentar muito o envolvimento entre os dois países, está no papel de Portugal na Nova Rota da Seda, sobretudo no corredor marítimo. Os recursos minerais já reconhecidos (de terras raras que servem para fazer ecrãs de telemóveis a níquel, cobalto ou zinco) e a possibilidade de transformar o porto da Vitória nos Açores numa estação gás natural liquefeito, pondo o arquipélago no centro das redes mundiais de energia, são o que mais interessa à política da China.

 A escala de oito horas do Presidente Xi Jinping nos Açores em 2014 e a visita do primeiro-ministro chinês em 2016 não foram acasos. O financiamento ou a operação dos portos portugueses - com destaque para Sines, cujo concurso para o novo terminal Vasco da Gama deverá ser lançado em Junho - são outro ponto de interesse, assim como a logística, a construção naval ou a aquicultura.

 O terceiro motor é o investimento de empresas de média dimensão (à escala chinesa) e de chineses a título particular.

 A vinda das grandes empresas estatais e o programa de vistos gold deu visibilidade a Portugal na China. Os chineses compram propriedades no Douro, em Setúbal e no Ribatejo - um exemplo é a compra do produtor de vinho Quinta da Marmeleira, em Alenquer, pelo empresário macaense com nacionalidade portuguesa Wu Zhiwei.

 O investimento atomizou-se por todo o território, não só em imobiliário - sector em que a Level Constellation é a presença corporativa chinesa em Portugal - mas também na indústria, no turismo ou no futebol (o fabricante de lâmpadas Ledman patrocina a segunda liga, vários pequenos clubes foram comprados, há interesse em emblemas do meio da tabela da primeira liga e a Fosun terá comprado metade da holding do empresário Jorge Mendes, que inclui a Gestifute).

 Esta dispersão além da arena restrita dos grandes negócios está a criar efervescência em empresários e autarcas desejosos de conseguirem à sua escala o mesmo que as grandes empresas e o Estado conseguiram: capital. "Há uma corrida das empresas portuguesas para entrarem naquele mundo financeiro", diz Fernanda Ilhéu. A Câmara de Comércio e Indústria Luso-Chinesa é um dos pontos que autarquias como Braga, por exemplo, usam para captarem o interesse dos investidores - ou para as empresas entrarem num portefólio a mostrar a investidores.

 A maioria destes investidores empresariais médios traz, contudo, a lição bem estudada antes mesmo de abordar os pontos de apoio em Portugal, como consultoras e escritórios de advogados, que usam sobretudo para validar as suas avaliações e para montar a operação.

 "Quando vêm ter connosco é para dizer 'estou interessado naquilo', não é para perguntar o que há para comprar", conta Miguel Farinha.

Há muitas antenas para captar informação sobre oportunidades nos sectores que interessam seja para investidores de grande ou de média escala: a embaixada, os bancos chineses que actuam em Portugal (o Bank of China, o ICBC, o CDB), as redes formais como a Associação Industrial e Comercial Chinesa ou informais via amigos e conhecidos.

 Nas negociações a este nível mais pequeno - frequentemente com facilitadores e comissionistas pelo meio - o lado português tem de se habituar ao estilo chinês: a palavra "não" não existe em mandarim e o que está negociado hoje pode não aguentar amanhã.

 As vantagens estão já à vista...

 Porquê Portugal? A China joga no longo prazo e foi dando sinais claros de para onde se queria mover. Em 1999 apresentou o Go Global, uma linha política que favorecia investimentos chineses no estrangeiro como forma de aplicar as enormes reservas cambiais chinesas (reduzindo a pressão cambial sobre o renmimbi) - e, de caminho, de importar conhecimento e ganhar acesso comercial e influência em países ocidentais.

 O papel de Portugal nesta estratégia foi também sinalizado: em 2003 com a criação do Fórum Macau (sinal de como via Portugal como plataforma para os países de língua portuguesa), e em 2005 com a parceria estratégica Portugal-China (sinal de como via o País como ponto de entrada na Zona Euro). A crise em 2011 ofereceu a oportunidade para passar à prática.

 "Há um problema estrutural de escassez de capital no País, que foi muito sentido no momento da troika e ampliado por uma crise que também foi da Zona Euro", aponta Brilhante Dias. A primeira vantagem mais evidente do investimento chinês para Portugal foi estar disponível para dar mais que outros quando havia dúvidas sobre a sobrevivência do euro.

 O reforço do capital foi muito importante para estabilizar grandes empresas como a EDP e a REN - que beneficiam ainda de financiamento de bancos chineses como o Bank of China, o ICBC ou CDB -, o BCP ou, por exemplo, sectores como o imobiliário. A escala dos fundos chineses também será importante na diversificação de fontes de financiamento para a construção de infra-estruturas e para as regiões do País a que os investimentos chineses já chegam.

 Para a China as vantagens são enormes. Os chineses preferem entrar por via de aquisições em vez de construírem de raiz, como os alemães ou os franceses, origens tradicionais de investimentos mais estruturantes da economia. Os investidores chineses também não compram negócios para lhes dar a volta e vender mais tarde - compram operações bem geridas, com lucros estáveis, com tecnologia ou conhecimento que possam absorver e acesso aos mercados sofisticados da Europa e dos Estados Unidos.

 O que atraiu a CTG para a EDP foi o negócio de energia renovável nos Estados Unidos, onde os chineses dificilmente entrariam a solo (os cerca de 1.000 milhões em lucros anuais são também um factor). Na REN, além de absorver o know-how, a State Grid tem usado a empresa como mercado e montra de demonstração para a Europa de transformadores e material eléctrico chinês.

 Tipicamente instalam um administrador seu, mas deixam praticamente intacta a equipa de gestão portuguesa. "Precisamos de tempo para aprender sobre o negócio e sobre a cultura de gestão do País", explica uma fonte chinesa. Este ano há renovação de mandatos e a continuidade da maioria dos gestores parece ser a regra - até de António Mexia, que para os chineses encorajou a entrada e reforço da posição de accionistas norte-americanos na EDP (algo que desagradou muito à CTG e à embaixada chinesa), e que os chineses chegaram a querer afastar.

 ...mas os riscos são mais difíceis de ver

 "No campo da segurança económica, o reforço e a conquista de posições de controlo de empresas de sectores estratégicos da economia portuguesa por parte de entidades estatais estrangeiras poderá comportar riscos para a economia nacional, caso a orientação estratégica dessas empresas não corresponda aos interesses do Estado português e dos agentes económicos portugueses."

 O parágrafo está no Relatório Anual de Segurança Interna divulgado em 2016 - desapareceu do relatório de 2017 - e é uma referência velada ao risco da influência de capital público chinês em áreas como a rede de distribuição e a produção de energia.

Mesmo nos investimentos que não são feitos por actores estatais é difícil distinguir totalmente a iniciativa privada da política. "Há secretários do partido - comissários políticos - em todas as empresas públicas e privadas", diz uma fonte com conhecimento profundo da China.

 Além deste mecanismo de controlo de informação o Estado tem enorme influência nos negócios privados por via dos bancos (são todos públicos) e da justiça. "A fusão entre a dimensão política e económica é profunda", aponta Miguel Santos Neves. Este é um dado importante dada a concentração de capital chinês nos sectores da energia, da banca e dos seguros.

 A influência forte da política num regime autoritário abre outra dificuldade a Portugal: a obtenção de informação sobre quem compra. Esta opacidade existe a vários níveis. Grandes conglomerados como a Fosun (dona da Fidelidade, Luz Saúde e principal accionista do BCP), a HNA (accionista da TAP), a CEFC (que estava a negociar a compra do negócio de petróleo da Gulbenkian e a seguradora Lusitânia ao Montepio) ou a Anbang (que tentou comprar o Novo Banco) cresceram meteoricamente através de aquisições financiadas com dívida, mas tornaram-se num ponto de interrogação grande na comunidade financeira internacional.

 As autoridades chinesas tomaram o controlo da Anbang e da CEFC, afastando os respectivos líderes por suspeitas de crimes económicos. A HNA - cuja opacidade na estrutura accionista tem atraído a a atenção da imprensa internacional - falhou pagamentos à banca no arranque deste ano e está pressionada para vender activos (até aqui sem impacto na TAP). Na Fosun ficou célebre o desaparecimento durante quatro dias de Guo Guangchang, que justificou a ausência com a assistência dada a uma investigação judicial.

 O controlo maior destes conglomerados tem tanto a ver com o receio chinês de que estejam a crescer demasiado rápido, como com irregularidades demasiado óbvias dos seus gestores e com a necessidade de controlo por parte do Presidente Xi Jinping. Para o lado português, a falta de informação leva a surpresas - com a CEFC intervencionada, por exemplo, será difícil ver a concretização dos negócios da Lusitânia e da Partex. A dificuldade de ter informação existe também ao nível do Estado português - a acção do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED) é naturalmente condicionado pelas autoridades chinesas -, dos reguladores, das autarquias e empresas.

 O caso da Wuhan Industries em Oliveira de Azeméis é um exemplo a um nível local. Em 2014 o investimento de 30 milhões de euros do grupo chinês numa fábrica no sector do metal foi um dos anunciados pelo então ministro Paulo Portas. O projecto recebeu fundos comunitários e um conjunto de benefícios fiscais, explica à SÁBADO Joaquim Jorge, presidente da autarquia. A construção de dois dos três pavilhões ficou, entretanto, por terminar. No fim do ano passado a câmara reuniu-se com representantes da empresa, mas desde então nada aconteceu e Joaquim Jorge está a preparar uma carta com uma queixa formal para a embaixada da China. "As empresas portuguesas têm de fazer due diligence (escrutínio) bem feita para saber bem quem está do outro lado", sublinha Fernanda Ilhéu. "Fica-se ainda demasiado entusiasmado com a perspectiva de negócio", soma.

 Um outro risco mais difícil de descortinar coloca-se ao nível europeu. "Os efeitos da relação política assimétrica estão a começar a ser notados na Europa", sublinha o relatório Authoritarian Advance - Responding to China's Growing Political Influence in Europe, do think tank alemão GPPI. "Os Estados europeus estão cada vez mais a ajustar as suas políticas em acessos de 'obediência preventiva' para ganhar o favor do lado Chinês", aponta. Um exemplo desta influência foi o bloqueio que vários países fizeram à proposta da Alemanha e da França (sob pressão política interna para limitar a entrada chinesa) para intensificar o escrutínio do investimento chinês - o jornal digital Politico citou Portugal como um dos países que se pronunciou contra a proposta.

 Como fazer amigos e influenciar pessoas

 Em Portugal, estes riscos são desvalorizados ou postos de parte perante a necessidade de capital - e perante a estratégia de entrada da China num País com o qual tem uma ligação histórica secular, devido à presença em Macau. A estratégia de longo prazo que deixa largamente intocadas as estruturas de poder locais nas empresas compradas e a associação a entidades e a membros da elite portuguesa - económica, política, académica e cultural - acaba por ser uma forma de limar os receios sobre uma tão rápida conquista de influência no País.

 "Os chineses projectam soft power - a ideia é não aparecerem de forma agressiva", explica uma fonte com larga experiência na China. Nas raras vezes em que organiza um seminário - como no que dedicou à economia do mar em Setembro do ano passado, por exemplo - a embaixada da China fá-lo com a Liga Multissecular de Amizade Portugal-China, uma associação sem fins lucrativos chefiada pelo general Pinto Ramalho, ex-chefe de Estado-Maior das Forças Armadas e que tem portugueses ligados a Macau.

 O relatório do GPPI ( Global Public Policy Institute )- muito crítico da inacção europeia perante o que entende ser o avanço ideológico de um modelo autoritário de regime político - refere que a estratégia chinesa de comunicação "inclui a formação de redes de influência sólidas entre políticos europeus, negócios, media, think tanks e universidades, criando camadas de apoio activo dos interesses chineses".

 Em Portugal há vários exemplos desta linha de acção, do recrutamento de ex-responsáveis políticos como Luís Amado, Eduardo Catroga ou Vasco Rocha Vieira (estes três para a EDP), às boas relações estabelecidas com os principais escritórios de advocacia, passando pela compra de media (a Global Notícias, dona do Diário de Notícias, Jornal de Notícias e TSF), pela entrada do Instituto Confúcio (que ensina a língua e a cultura chinesa) nas universidades de Lisboa, Coimbra, Aveiro e Porto ou pelo apoio de think tanks como a Associação dos Amigos da Nova Rota da Seda.

 Seja pela influência do capital, pela forma de agir ou pela ligação histórica ao País - que os chineses prezam -, esta é uma relação que vai continuar a expandir-se. Um gestor chinês ouvido pela SÁBADO, que vive há relativamente pouco tempo em Lisboa, explica que além do negócio este é um lugar muito bom para viver. "Os portugueses tratam-nos muito bem, sinto-me bastante confortável aqui", afirma. O futuro parece ser um lugar bom. "Se o Governo português apoiar os objectivos da China na Rota da Seda, o Governo chinês vai continuar a apoiar os investimentos em Portugal", remata.

 Com Nuno Tiago Pinto

Artigo originalmente publicado na edição 727 da SÁBADO de

5 de Abril de 2018.




Sem comentários:

Enviar um comentário

Acabou a ilusão globalista... A geopolítica volta a governar o mundo

Durou 3 décadas o tempo da “globalização feliz”, abriu-se em Berlim e fechou-se em Moscovo. Começou com a queda de um muro e acabou com uma ...