quarta-feira, 23 de junho de 2021

A Propósito da "Reestruturação das FA" e da "Carta dos Generais"

Sérgio Parreira de Campos

Só há uma coisa mais difícil do que pôr, na cabeça 

de um militar, uma nova ideia, é tirar a antiga.” 

Liddel Hart

Defendia Lidel Hart o fim da conscrição universal  e a criação de um exército profissional, pequeno, bem treinado e dotado de equipamentos modernos, aptos para operar em qualquer Teatro de Operações.  No âmbito da estratégia militar, relembrou ainda o papel histórico da Grâ-Bretanha e a sua longa experiência de guerra, prevalecendo o poder marítimo. Vem tudo isto a propósito da chamada “Carta dos Generais” que foi amplamente divulgada e se refere à reforma da “Estrutura Superior das Forças Armadas” que o Governo pretende implementar, apresentando razões de discordância face à proposta apresentada.

Ou seja, está um conflito aberto entre os militares e o poder político, conflito este iniciado pelo Governo, o que parece grave e muito difícil de entender, dado que se trata de um conflito entre instituições fundamentais ao país e que, como tal, estão “condenadas” a entender-se.

Voltando à frase de Lidel Hart, só para dizer que foi escrita no início do século passado e, desde então tudo mudou. E também os militares.

Talvez o Governo não se tenha apercebido disso e, como tal,  por tenha feito tudo como o fez, às escondidas.

Bom, para princípio de conversa, entendo dever dizer que o conteúdo da proposta do Governo não me choca, como hipótese possível de encarar a questão.

Chocam-me sim, outras coisas:

-  Choca-me a marginalização e a secundarização a que as Forças Armadas têm vindo a ser sujeitas, de há longo tempo para cá;

-  Choca-me a constante diminuição de recursos disponibilizados para as Forças Armadas, de há longo tempo para cá;

-  Choca-me a constante falta de renovação do  equipamento das Forças Armadas, que arrisca, por acumulação, a tornar-se impossível de reverter;

- Choca-me a constante degradação das perspectivas profissionais dos militares;

-  Choca-me que o Governo entenda que quem mais sabe da matéria não deva ser ouvido;

-  Choca-me que o Governo não tenha entendido que, em regimes democráticos, alterações como a presente exigem uma discussão aberta entre todos os interveninentes, um consenso alargado das forças políticas, e uma maior estabilidade temporal para se efectivarem.  

-  Choca-me que o Ministro da Defesa Nacional não tenha tido outros argumentos para responder à carta, a não ser enveredando pelo caminho da ordinarice.

Mas uma coisa me choca ainda mais do que tudo isto: É que não se enceta o processo de uma reorganização da estrutura superior das Forças Armadas só porque sim, só porque outros o fizeram. Além do mais esse é um frágil argumento pois se é possível apresentar exemplos de países que o fizeram, será sempre possível apresentar mais exemplos de outros que o não fizeram.

É que o problema não está aí, está noutro ponto que o Governo parece ignorar. O que está em causa é a relação que tem de existir entre a estratégia prosseguida pelo país e o papel que as Forças Armadas terão de desempenhar no desenvolvimento dessa estratégia e, consequentemente, qual a estrutura que as Forças Armadas devem ter para prosseguir esse caminho.

Só que, há muito tempo que o nosso país não tem uma estratégia adequada para o desenvolvimento  do nosso imenso potencial, que tem de ser explorado no sentido de promover o desenvolvimento económico e social, e garantir a segurança na nossa área de interesse estratégico. 

As Forças Armadas constituem o principal instrumento para a execução da estratégia mas têm de se articular com todos os sectores decisórios, de forma a que se potencie recursos que são escassos como por exemplo na vigilância do território e do espaço maritimo, na detecção e exploração de recursos subaquáticos ou na investigação e desenvolvimento tecnológico. Mas, no entanto adquirem-se lanchas de fiscalização marítima para a GNR, num claro desperdício de recursos.

Vejamos, para quem não tem uma estratégia, qualquer organização serve, o que é infelizmente o nosso caso. Então pensem primeiro, definam caminhos exequíveis e rentáveis e depois, e só depois, pensem nos meios adequados para dar corpo a essa estratégia, e alterem então o que for de alterar. Portanto, até lá, não mexam no que existe. Mas despachem-se, que já vamos muito atrasados!

Apenas umas palavras mais, agora para falar da chamada carta dos generais. Quanto a esta só lamento três coisas.

Primeiro que, quando os ex-Chefes exerceram os seus cargos, não tenham sabido bater o pé sempre que fosse caso disso. E todos nos lembramos de várias ocasiões em que o deveriam ter feito.

Segundo que, quando alguns exerceram os seus cargos tenham defendido situações contra as quais agora se mostram discordantes.

Terceiro que, para defender a sua actual posição, alguém tenha falado dos inconvenientes para a indústria de defesa, sabendo todos que as Forças Armadas sempre preferiram adquirir fora do que lançar desafios à nossa indústria de defesa. Porquê ? Responda quem souber.

Ou seja, e para terminar, não é por acaso que os portugueses continuam de há longo tempo a ambicionar viver um dia como “os outros”, embora tenham vindo apenas a ver essa esperança perpetuar-se porque poucos responsáveis existem, a vários níveis, que deixem de olhar apenas para o seu umbigo. E entendam isto como quiserem!


2 comentários:

  1. Alertado hoje, 16Jul21, pelo correio AOFA, dois apontamentos:
    A) Do reformismo luso no MDN/FA:
    «Modernização en marche» -Restelo 2020 dC
    O Nó Górdio militar e o 11º Mandamento
    «o Plano Setorial da Defesa Nacional para a Igualdade 2019-2021» Produção João Cravinho MDN.
    «Vasco Lourenço escreve carta arrasadora para Cravinho» -Sol (27Jul)
    O colapso das Forças Armadas” - André Pardal no Público (26Jul19)
    «Querem isso, Exército sem soldados?» -Nuno Rogeiro, na Sábado (4Jul19)
    «Uma reforma que define um novo modelo para a DN» -Aguiar Branco (2013)
    «O reforço da tendência de militarização» da GNR-MGen Monteiro Valente (2007)
    «A reforma da instituição militar estará concluída em 2007» - Severiano Teixeira (2006)
    «O ministro está a fazer uma revolução tranquila no MDN» - Luís Amado (2005)
    «O Exército marcha para a mudança» - General Viegas CEME (2002)
    «FA -o caminho do futuro, que tropa queremos?» - General Alvarenga CEMGFA (2002)
    «Reforma das FA -uma reflexão» - Jorge Sampaio PR (1999)
    «O Exército não pode fechar mais quartéis» - General Barrento (CEME)
    «Desafios das FA no virar do século» - Veiga Simão (2Abr98)
    «Racionalização dos efetivos, um imperativo de modernidade» - Fernando Nogueira (1992)
    «Vamos combater a nossa inércia» - General Loureiro dos Santos CEME (1991)

    Primeiro acto: 1989, queda do muro de Berlim seguido do fim do Pacto de Varsóvia; ano de 2004, final do serviço militar obrigatório aqui.
    De 1991 a 2021, a mesma luta, de como destruir um Exército, ministros em associação com os chefes!
    B)

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  2. B) Sete verdades para umas novas Forças Armadas
    «A única coisa mais difícil do que meter uma ideia nova na cabeça de um militar, é tirar a ideia antiga» – Liddel Hart.
    Modelo: países aliados e bem mais desenvolvidos que Portugal há muito reorganizaram a estrutura da Defesa/FA (Canadá e Alemanha, entre outros). Criaram o Estado-Maior da Defesa junto do Ministério da Defesa, chefiado por um general de quatro estrelas, único general deste posto nas FA. Reuniram e racionalizaram uma série de comandos, unidades, órgãos e serviços dos três ramos militares.
    Sistema de forças: a experiência da última década permite aquilatar das previsíveis necessidades de forças, a par das capacidades financeiras do país para a sua sustentação. Em vez do sistema de quintas (ramos), FA com um efectivo produto operacional conjunto.
    Escolas, unidades e quartéis: a Academia Militar do Exército, aumentada do terreno do antigo Regimento de Comandos, para os cadetes dos três ramos; dois pólos, numa base aérea e na base naval do Alfeite, para a formação complementar dos cadetes da Força Aérea e da Marinha.
    Reduzindo as entradas nos quadros permanentes e abrindo a entrada a quadros contratados, facilitar as carreiras e terminar de vez com o que se tem passado: fuga de pilotos para o mercado civil; reduzida ocupação profissional dos quadros; capitães excedentários relativamente ás forças constituídas.
    As quatro escolas práticas das armas do Exército, passam a funcionar na zona de Tancos/Santa Margarida, na actual escola prática de Engenharia-EP inter-armas.
    Equipamentos: o país conta com uma experiência muito negativa no campo dos grandes investimentos em armamento, que depois não tem capacidade de operar, nem campo para utilizar: segunda esquadra de F-16 (40 aviões no total); dois novos submarinos (900 milhões de euros); 260 blindados de rodas (364 milhões); carros de combate de lagartas (37 tanques/80 milhões); aviação do Exército (!). Sem ter dotado as FA de 30 mil novas espingardas, mantendo a arma da guerra colonial.
    EMD: a crise financeira veio impedir o MDN e o Exército de levarem por diante a construção faraónica de um novo Estado-Maior na Amadora, projecto da década de 90 (15 milhões de contos, na altura). Um futuro EMD, ajustado à geografia, economia e população militares, cabe perfeitamente no complexo do Estado-Maior da Força Aérea em Alfragide. Com o MDN.
    Futuros regimentos: em Vencer a Guerra (1984), o antigo subchefe do Estado-Maior da Força Aérea francesa, general Étienne Copel, sublinhando o papel da estrutura operacional, retirava a componente operacional da tutela dos comandantes de regimento. Tal acabou por suceder em Portugal na década de 90, reduzindo a responsabilidade dos coronéis, limitada a alguns apoios logísticos e administrativos de base. Um bom quadro para o enriquecimento das funções dos comandantes de batalhão, atribuindo-lhes o comando completo do regimento.
    Orçamento: a degradação remuneratória dos militares aconselha a que, com as reduções de custos do sistema, seja mantido o valor do orçamento da Defesa, permitindo pagar melhor sem sobrecarregar os contribuintes.
    José Barroca Monteiro
    Coronel pára-quedista
    (Sol, 9Mai09)

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