José Mateus
... E como o presidente Ashraf Ghani acabou a cumprimentá-lo muito afectuosamente. Notícias fescas mas, sobretudo, uma visão própria do desastre afegão, com a retirada americana, uma manobra estratégica que, daqui a uns tempos, será tipificada como manobra de altíssimo cinismo político, verdadeira "chaos operation" regional..
O meu velho amigo Paulo Casaca, um economista notável possuidor de
fortíssima e "acidentada" (como deve ser...) formação política é
homem que gosta de meter as suas "boots on the ground" e regressou agora de uma volta pelo teatro do grande jogo afegão. Retomamos aqui o relato que ele
acaba de publicar no "Tornado".
Paulo Casaca, em Tashken | 19 Julho, 2021
1. Nos
escombros da União Soviética
O Embaixador britânico
dissidente Craig Murray, numa das observações porventura mais pertinentes no
seu testemunho transformado em livro intitulado ‘Assassínio em Samarcanda’,
apresenta o Uzbequistão como um país onde o fim da União Soviética se traduziu
num endurecimento da ditadura comunista, e não em qualquer primavera da
liberdade.
Conheci o Uzbequistão em 2014,
uma década depois de terminado o consulado de Murray no país, e tudo o que vi
confirmou a impressão de o país ser gerido por uma severa ditadura, certamente
mais acentuada do que era a da Alemanha Oriental dos anos 1970 ou a Rússia dos
anos 1980.
Posto isto, e entre os inúmeros
pontos em que discordo da visão do ex-diplomata britânico, fiquei sempre
impressionado pela arte de receber e tolerar os estrangeiros. A ditadura de
Karimov se porventura não fomentou essa capacidade, também não a eliminou.
Na verdade, a primeira razão
pela qual me interessei pelo país foi o relato de membros da comunidade judaica
europeia do caloroso acolhimento no Uzbequistão dos judeus que perante o avanço
das tropas nazis na União Soviética encontraram aí refúgio. O Uzbequistão
continua ainda hoje a abrigar deslocados tártaros exilados pelas purgas
estalinistas ou coreanos fugidos das invasões japonesas, entre muitos outros
refugiados das mais diversas paragens.
Para além de todos os
refugiados que são hoje parte integrante do seu povo e dos muitos russos ou
ucranianos que ficaram depois da implosão soviética, há comunidades uzbeques
nos países vizinhos e comunidades dos países vizinhos no Uzbequistão. A título
de exemplo, uma das mais emblemáticas cidades do país, Samarcanda, etnicamente,
é esmagadoramente tajique.
E depois, a verdade é que a
ditadura uzbeque não eliminou (ou pelo menos não eliminou totalmente)
brilhantes académicos e diplomatas que tive a oportunidade de conhecer e com
eles muito aprender, muito em especial em matéria de Islão.
Sete anos depois, a morte de
Karimov deu lugar à subida ao cargo do seu Primeiro-Ministro de 2003 a 2016,
Shavkat Mirziyoyev, e a alguma liberalização do regime, que se faz notar
sobretudo na integração económica mundial, e que se reflectem na mudança de
imagem geral do comércio e movimento da capital desde a minha presença prévia
no país em 2014.
A União Europeia concedeu
recentemente ao Uzbequistão o estatuto ‘GSP+’, o estatuto comercial mais
favorável atribuído teoricamente a países terceiros em função de um conjunto de
critérios de bom comportamento laboral, ambiental, social e sobretudo de
direitos humanos. Não se trata de uma distinção significativa porque ela tem
sido concedida em total contradição com esses preceitos, tornando-se antes de
um símbolo da decadência política das instituições europeias. A generalidade
dos observadores independentes não vê uma evolução significativa no carácter
ditatorial do regime que possa justificar o gesto europeu.
2. O Uzbequistão e a Jihad
Como todas as repúblicas da
Ásia Central, de religião maioritariamente muçulmana, após o fim da URSS, o
Uzbequistão assistiu a um grande influxo de doutrinação religiosa,
frequentemente de pendor fanático islamista, que rapidamente deu lugar a
terrorismo jihadista em conexão com o santuário talibã no Afeganistão, país com
o qual faz fronteira.
O Uzbequistão é tido por ser o
país da região que tratou de forma mais dura e radical o movimento islamista,
combate que passou por repressão e muita violência, sendo que a questão não
está ultrapassada. Os EUA em particular e o Ocidente em geral, depois de um
apoio irrestrito ao jihadismo como forma de minar a União Soviética, passaram
ao plano contrário após o 11 de Setembro de 2001, focando apenas a vertente da
violência e da repressão.
O Uzbequistão – de onde era
originária uma grande parte do exército soviético que combateu no Afeganistão –
passou assim de país ditatorial inimigo da liberdade religiosa a aliado seguro
na guerra contra o terror, tendo abrigado importantes bases norte-americanas de
2001 a 2005.
Em 2005, a propósito de um dos
mais sangrentos confrontos com islamistas, em Andijan, no Vale de Ferghana (ver
por exemplo este relatório) os EUA
condenaram vivamente a violência do exército uzbeque, o que levou ao
encerramento das bases americanas e a uma reviravolta diplomática, com uma
ancoragem cada vez mais sólida do país na esfera de interesses russos e
chineses.
Para a Rússia e muito em
especial para a China – que como assinalei na semana anterior, é o novo líder
estratégico regional – o jihadismo talibã passou a ser visto como um
instrumento útil na luta contra o Ocidente, no fundo invertendo-se os papéis
desempenhados há décadas atrás.
Com Mirziyoyev voltou a
fazer-se sentir a tendência para encarar o jihadismo de uma forma utilitarista.
Karimov tinha tido já a peregrina ideia de apoiar uma facção dissidente do
grupo islamista ‘Hizb ut-Tahrir’, o Akromiya, com a intenção de enfraquecer o
‘Hizb ut-Tahrir’ que considerava o seu inimigo principal, para ver o Akromiya
montar a mais espetacular sublevação registada (Andijan, 2005) e, por tabela,
ser acusado de fabricar grupos jihadistas para massacrar o seu povo.
Desde que a administração Trump
desastradamente seguiu os conselhos do Qatar e abandonou a posição de que
qualquer negociação para a paz teria de ser dirigida pelas autoridades afegãs –
uma repetição da desastrosa lógica do Vietname – que a legitimidade das
autoridades afegãs foi posta em causa, com um enorme reforço da confiança dos
Taliban e, tão ou mais importante do que isso, com os principais actores
internacionais a considerar os talibã um interlocutor priveligiado.
Na senda do exemplo americano,
tanto a Rússia como a China, como de resto também o Uzbequistão, acharam que o
caminho a seguir era negociar com os talibã para que estes deixem de os atacar,
vendo o grupo jihadista como dando mais garantias do que as autoridades afegãs
de estabilidade e pacificação no país.
Os talibã passariam assim a ser
os bons jihadistas, capazes de assegurar mais estabilidade que as autoridades
laicas e, mais importante ainda, capazes de manter um acordo com terceiros – o
que deram largamente provas de não fazer durante o seu consulado de terror
sobre o país.
Como observei a semana passada,
a China, que me parece ser a verdadeira estratega neste jogo, terá uma
confiança muito limitada nessa cenário, mas confesso que fiquei desiludido
quando me dei conta que em alguns lugares chave do poder uzbeque vejo agora rostos
de uma nova geração que se pensa mais moderna e liberal mas que me parece
francamente menos competente, informada e lúcida que a anterior, encarando como
possíveis cenários irrealistas.
3. A batalha de Cabul
A pressão de quase toda a
comunidade internacional sobre as autoridades afegãs para que elas se rendam
aos talibã é impressionante, e só nesta semana vimos o
inefável Qatar a promover negociações entre as autoridades afegãs conduzidas
pelo número 2 afegão e os talibã, enquanto eu mesmo pude presenciar as
negociações em Tashkent entre uma delegação paquistanesa integrando militares e
dirigida pelo Primeiro-ministro Imran Khan e a delegação afegã dirigida pelo
Presidente Ashraf Ghani.
E, por mero acaso, à saída da
reunião quase choquei com o Presidente Ghani, que parou, me cumprimentou com
imensa cordialidade como se nos conhecêssemos (nunca nos encontrámos)
adivinhando o interesse nos meus olhos, de uma forma que não deixou de me
espantar.
Como é possível que o
Presidente de um país à beira do colapso total, sujeito a uma inacreditável
pressão (só o que eu vi em Tashkent arrasaria a moral do mais intrépido dos
combatentes) tenha encontrado o estado de alma para perder alguns segundos a
cumprimentar um desastrado passeante que se pôs no seu caminho?
Talvez quem esteja a pensar que Cabul são favas contadas esteja a menorizar a fibra dos afegãos.
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