Foi um romance histórico, o “Kahena”, de Raouf Ofkir.
O autor não será (ao contrário do escriba indígena Saraiva) candidato ao Prémio Nobel da literatura. Mas sabe do que fala e sabe como falar, mesmo quando isso implica a coragem de ir frontalmente contra as narrativas dos dominadores e incorrer no risco de ser atingido por uma horda de “fatwas”.
Já conhecia alguns ensaios de Raouf Oufkir e tinha ouvido falar do seu romance histórico (que o levou, aliás, a fazer um mestrado em história). Mas nunca o tinha lido até que, sem termos falado, a Miss S., numa das suas passagens por Lisboa, mo trouxe como oferta surpresa. Maravilhosa ideia. Assim que lhe peguei nunca mais o larguei até o ter relido três vezes.
Oufkir carreia para o romance informação inédita (fruto de uma aturada investigação) que revela realidades cuja existência é ignorada e cuja ocultação é um objectivo prioritário e permanente das narrativas dominantes na matéria. Seria, aliás, muito interessante e oportuno, que o ensaísta e historiador Oufkir voltasse ao tema e publicasse um trabalho científico sobre uma realidade que ele agora conhece melhor do que ninguém. E que é urgente ser amplamente conhecida e reconhecida...
Mas não é só o conhecimento que as linhas do romance exalam que é surpreendente. Mais surpreendente ainda (se possível...) é a coragem revelada por Oufkir ao produzir quase a cada página uma prosa que arrisca uma “fatwa”. Um risco assustador, mesmo para um Raouf Oufkir.
Por muito menos (incomparavelmente menos...), o prémio Nobel da Literatura Salman Rushdie teve a sua “fatwa”. Mas para este marroquino, residente em França, a “fatwa” nunca chegou... Talvez por se chamar Oufkir, ser filho do velho general do mesmo nome (há muito falecido) e isso o tornar um alvo perigoso. Intocável ou quase, portanto. Mas, para quem passou quase metade da sua vida preso e isolado do mundo, a ameaça das “fatwas” islamistas talvez lhe provoque apenas um sorriso...
“Respeitinho é muito bonito” e, parece, que décadas depois de morto, o velho general que fez de Hassan II rei de Marrocos (até tentar depô-lo num golpe de generais republicanos) ainda impõe muito “respeitinho”. Porém e mesmo que assim seja, o risco que Raouf Oufkir escolheu correr, ao escrever os dois volumes deste “Kahena”, não é decisão ao alcance do comum dos mortais.
Nota 1: Entrevista breve de Raouf Ofkir sobre o romance “Kahene” e sobre a sua vida a um jornal de El-Jadida.
Nota 2: Al-Jadida é a antiga praça-forte portuguesa de Mazagão, recheada de arquitectura e monumentos portugueses, recentemente recuperados com o apoio português. Orson Welles filmou partes do seu “Othelo” na chamada “cisterna portuguesa”. Uma cidade cuja visita recomendo e de que guardo óptimas memórias.