O
Presidente Marcelo tem uma excepcional capacidade de leitura, é mesmo um autêntico
devorador de livros. Por isso, aqui no Intelnomics, não duvidamos que, apesar
das suas muito preenchidas agendas presidenciais, ele encontrará tempo para ler “La
Quimera Al-Andalus” e/ou “Al-Andalus Contra España - La Forja del Mito”, do especialista espanhol Serafin Fanjul.
Talvez
que, depois de ler estes trabalhos de Serafin Fanjul, ele se aperceba da dimensão da
enormidade que lhe saiu boca fora ("A alma árabe é o fundo da alma portuguesa”) quando, recentemente, foi participar nos "Encontros de Reflexão Comemorativos dos 50 anos da Fundação da Comunidade Islâmica de Lisboa" e recordar "os cinco jovens" que, em 1968, iniciaram o projecto de uma
lisboeta mesquita de financiamentos opacos e grandes aberturas a salafistas…
Boa
leitura, senhor Presidente.
PS:
Ler o maior dos (escassíssimos) arabistas portugueses (e o único que lia os clássicos islâmicos no original e também traduziu alguns, como o nosso moçárabe Ibn Caci), o senhor Professor Garcia Domingues, também não faria mal… Renovamos os votos de boa leitura, senhor Presidente.
Ler o maior dos (escassíssimos) arabistas portugueses (e o único que lia os clássicos islâmicos no original e também traduziu alguns, como o nosso moçárabe Ibn Caci), o senhor Professor Garcia Domingues, também não faria mal… Renovamos os votos de boa leitura, senhor Presidente.
Entrevista ao Prof. Garcia
Domingues na revista “Leonardo” (Extracto)
in Leonardo, Ano I, n.º 4, Dez. de 1988, pp. 25-31
Leonardo
– Os árabes contribuíram para a formação de Portugal?
Garcia
Domingues – Em meu parecer, os muçulmanos não influenciaram a formação da nossa
Pátria, pois no pensamento árabe do tempo não se distinguiam figuras de relevo,
como poetas, filósofos e teólogos.
Se os
árabes contribuíram em algum aspecto para a definição da nossa nacionalidade
foi apenas no que respeita ao território e aos aspectos demográficos. Não há
influência nítida e demonstrável do pensamento árabe no Norte. Não encontrei
verdadeiramente essa influência… Engraçado, sou arabista e pareço um anti-árabe.
L –
Existia algum diálogo entre cristãos e muçulmanos?
GD – Não,
nunca houve um verdadeiro diálogo. O que aconteceu foi uma coexistência que,
raro em raro, não foi pacífica.
Mas os
moçárabes facilitaram a Reconquista, até mesmo a conquista do Algarve. Muitos
deles, entre os quais um tal Garcia Rodrigues, frequentavam as cortes dos
chefes mouros e dos Cheikes dando a conhecer os pontos fracos das suas defesas.
Como sabem, o Conde Sesnando que tinha sido durante muito tempo primeiro
ministro da Taifa de Sevilha, auxiliou o Rei Fernando Magno na conquista de
Coimbra.
A ajuda
desses povos foi de tal modo importante que quando o Rei D. Afonso Henriques
fez prisioneiros moçárabes gerou um protesto dos monges de Santa Cruz de
Coimbra.
L –
Podemos entender que há uma realidade de Portugal mesmo antes da conquista?
GD –
Estou convencido de que sim. Antes da formação do Reino deram-se eventos que
determinaram a constituição de substractos etnográficos que facilitaram as
conexões que lhe deram unidade e origem.
No
território ocidental sempre existiu uma tendência para se criarem forças
independentistas. Houve durante muito tempo a Taifa de Badajoz que incluía
Beja, Évora, Santarém, Lisboa, Coimbra e Viseu que foi ocupada pelos Reis de
Castela e, posteriormente, recuperada pelos Almorávidas. Por outro lado,
existira antes o Reino dos Suevos, que correspondeu a todo o nordeste
peninsular até à região de Coimbra.
Estes
Estados correspondem em muito, ao actual território português e, nesse sentido,
pode-se afirmar que são o prenúncio da formação do território português, pois
influenciaram profundamente a unidade geográfica e populacional da região.
Mas penso
que a determinação do território português partiu da consciência dos Barões
durienses que se reuniram em redor de D. Afonso Henriques. Não é possível
conceber que o Reino de Portugal tenha sido constituído por um garoto de
catorze anos e pela vontade dos Barões que passavam todo o tempo a lutar entre
si.
A verdade
é que houve uma série de enleios, de complicadas uniões políticas. Se os
moçárabes não tivessem acompanhado o movimento dos Barões durienses, Portugal
não existia.
L –
Mas se essa realidade não residia no território, no povo ou na língua, temos de
admitir que ele deriva de um plano mais próximo do filosófico que de um plano
político…
GD – Sim,
essa realidade era espiritual. Lembro-lhes que o Cristianismo já existia há
muitos anos na Península e que, por exemplo, na época dos romanos foi criada a
seita de Prisciliano, cuja influência se fez sentir nas regiões nortenhas onde
existiam pequenos núcleos de culto e cultura religiosa. Decerto que
contribuíram para essa unidade.
L –
Parece-nos, contudo, que a origem de Portugal se pode colocar num plano
espiritual, mas nunca num plano religioso já que não havia uma harmonia
religiosa.
GD – No
plano religioso e eclesiástico é claro que houve problemas. Por exemplo, a
oposição de Braga a Santiago de Compostela contribuiu para a formação da
nacionalidade.
Também
não devemos deixar de considerar a contribuição das ordens religiosas para a
construção da nossa Pátria. As ordens de Cluny e de Cister. Digamos, o
Cristianismo fez desaparecer muitos cultos e, noutros casos, assimilou-os.
L –
Afirmou que os árabes não tiveram influência na formação de Portugal. Contudo,
a língua portuguesa possui elementos muçulmanos…
GD – Não,
não. A língua portuguesa é moçarábica. Não podemos esquecer que a região de
Coimbra era um importante centro moçarábico. Os moçárabes são cristãos de
cultura antiquíssima da Península Ibérica.
Os problemas
da língua pátria relacionam-se com o aparecimento do cristianismo peninsular.
Há palavras que evoluíram especialmente no moçárabe. Por exemplo, há uma terra
perto de Vila Real de Santo António chamada Caçela. Esta palavra vem do latim
Castella, que significa castelos. No castelhano, a palavra evolui para
castilla. Portanto, não é deste castilla que resulta Caçela. A passagem do ST
para o ç só se verificou no moçárabe, o que prova a influência moçarábica.
Forneço-lhes outro exemplo: no Algarve diz-se grizéus, nome dados às ervilhas
verdes. Gri significa verde acinzentado no sul de França e na costa levantina
de Espanha. Daí vem griziu que dá grizeu, o que só aconteceu no moçárabe. A
influência é mais moçárabe do que árabe…
L – É
possível relacionar o messianismo português com o pensamento árabe?
GD – Não
o relaciono com o árabe, mas antes com o hebraico. Os árabes têm a ideia do
Mahdi.
O
messianismo sebastianista é um valor nacional extraordinário. É uma prova de
sobrevivência de Portugal. O sebastianismo é popular, nasceu de circunstâncias
trágicas e pavorosas. No entanto, não o concebo como uma mística religiosa
universal.
L –
Revertendo às relações entre o Islamismo e o Cristianismo. Hoje, existe diálogo
entre estas duas religiões?
GD – Sim.
A prova é que se está a realizar. O ponto de contacto tem sido a Espanha e as
famosas reuniões de Córdova. Nestas iniciativas fazem-se ofícios religiosos
cristãos e muçulmanos no mesmo espaço físico, a Mesquita Catedral de Córdova,
embora em separado.
A Igreja
Católica sempre se recusou a participar nos congressos de religiões que se
realizavam em Chicago porque não considerava os outros cultos como realidades
positivas no domínio religioso. De tal modo assim era, que julgava uma ideia
herética o diálogo entre religiões.
Depois do
Vaticano II, a hierarquia eclesiástica modificou a sua posição e levou a efeito
os encontros de Assis que contou com budistas que, até então, não eram
considerados. Penso que a mudança de atitude se deve à II Guerra Mundial e à
insistência dos intelectuais europeus, que procuram conhecer o mundo muçulmano.
L –
Considera esse diálogo possível no domínio da teologia?
GD – Há
uma coisa em comum: a unidade de Deus. Até certo ponto entre cristãos e
muçulmanos pensa-se que se está adorando o mesmo Deus, um Deus único anunciado
por Abraão, que se relaciona igualmente com o judaísmo. Portanto, parece
tratar-se da mesma divindade. Na realidade, entre Cristianismo e Islamismo
existem semelhanças que permitem o aproximar das duas religiões, apesar de as concepções
teológicas e simbólicas divergirem.
No
entanto, penso que esse diálogo tem um sentido político. A Europa não vê com
bons olhos a união do mundo muçulmano à União Soviética.
Aliás, a
escolástica foi influenciada pelo pensamento árabe, e até houve doutores em
Paris que defendiam as ideias de Aristóteles segundo a interpretação de
Averróis. Recordo que S. Tomás de Aquino conheceu os textos árabes de
Aristóteles.
O
historiador espanhol Miguel Asín Palacios, a maior figura do arabismo
peninsular, tentou demonstrar a influência da mística islâmica na mística
cristã. Pessoalmente, não descortino essa influência no misticismo português.
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