“O mar no
ressurgimento nacional”, sintético ensaio do Alm. Silva Ribeiro, é um documento excepcional de reflexão estratégica que o
Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas acaba de divulgar através do
Observador: "O relacionamento de Portugal com o mar tem sido marcado por
encontros e desencontros, intimamente relacionados com os momentos de
prosperidade ou de empobrecimento nacional. Com a economia profundamente
afetada pela atual pandemia da COVID-19, e depois do enorme esforço de
recuperação da crise financeira de 2008, é altura do país pensar num reencontro
com o mar, que contribua para o ressurgimento nacional." Porém, o CEMGFA
alerta imediatamente que "De pouco ou nada
servirá a formulação de novas estratégias nacionais para o mar, por mais
brilhantes que sejam, se não formos capazes de as operacionalizar com sucesso."
Um documento inteligente, informado e estruturado que é imperioso ler
e estudar com toda a atenção e sem perdas de tempo.
De pouco ou
nada servirá a formulação de novas estratégias nacionais para o mar, por mais
brilhantes que sejam, se não formos capazes de as operacionalizar com sucesso.
Almirante António
Silva Ribeiro, Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas | Observador | 27
jun 2020
O relacionamento de Portugal com o mar tem sido marcado por encontros e
desencontros, intimamente relacionados com os momentos de prosperidade ou de
empobrecimento nacional. Com a economia profundamente afetada pela atual
pandemia da COVID-19, e depois do enorme esforço de recuperação da crise
financeira de 2008, é altura do país pensar num reencontro com o mar, que
contribua para o ressurgimento nacional.
A partir do século XII Portugal
iniciou o seu primeiro encontro com o mar, quando a ação governativa conferiu
um carácter marítimo às diferentes políticas públicas, em especial à economia,
à cultura e à defesa. Neste contexto, foram criadas novas atividades de
desenvolvimento marítimo, fomentada a mentalidade, a vontade e a identidade
marítima nacionais, promovida a segurança marítima, e incorporados três ativos
marítimos relevantes no nosso património territorial: Lisboa (1147); Silves
(1189); e Alcácer do Sal (1217).
A celebração da paz com Castela em
1411, aliada ao aparecimento de lideranças carismáticas, dotadas de uma visão
marítima inovadora (D. Dinis e D. João II), permitiram que nos séculos XIV e XV
a sociedade fosse mobilizada para as principais políticas públicas marítimas e,
através do mar, Portugal descobrisse novas zonas de exploração económica,
concretizando os feitos mais épicos da nossa história coletiva, cujas
consequências perduraram no tempo.
Em contraponto, entre os séculos
XVI e XX, por força das conjunturas externas marcadas por sucessivos conflitos
e em consequência da sua política internacional, Portugal foi assolado pelos
efeitos perturbadores de várias circunstâncias estratégicas, que forçaram um
distanciamento do mar e obrigaram à focalização do país nos esforços políticos
e militares destinados a preservar o império e a independência.
O último quartel do século XX
trouxe a paz, oportunidade decisiva para Portugal materializar um novo encontro
com o mar, premente e indispensável para superar as dificuldades financeiras em
que tem vivido. Contudo, para que isso seja possível, interessa pensar naquilo
que precisamos fazer, desde já, para que, com o contributo do extraordinário
ativo marítimo que é a plataforma continental estendida, o país se possa
focalizar na visão estratégica: ressurgir com o mar!
Este exercício deliberado de
reflexão permitirá obter uma perspetiva sobre os desafios marítimos nacionais
nas dimensões económica, cultural, ambiental, política e securitária, e
identificar formas de superação, traduzidas em linhas de ação que explicitam o
que fazer e como fazer para Portugal se desenvolver em segurança, explorando
todas as potencialidades que o mar encerra.
Na dimensão económica, os desafios
resultam da crescente competição pelos recursos marinhos e da não aplicação de
medidas assentes na equidade, na solidariedade e na partilha, que geram
crescentes conflitos de interesse entre múltiplos atores internos e externos. A
sua superação implica: fomentar áreas de especialização nas infraestruturas
portuárias, nos transportes, nas pescas, na construção e reparação naval, e nos
recursos naturais (minerais, energias renováveis e biológicos); promover marcas
distintivas do turismo, da cultura, do lazer e do desporto, associadas à
sustentabilidade dos oceanos, que explorem as circunstâncias geográficas do
país e a arte de bem receber que nos caracteriza; obter capacidade científica e
tecnológica acrescida, que permita identificar e explorar, com inovação e
sustentabilidade, os recursos inertes existentes nos fundos marinhos da
plataforma continental; desenvolver a cooperação com países com interesses
marítimos convergentes (e.g. Brasil, Noruega, Japão e Coreia do Sul), baseada
em parcerias multilaterais ou bilaterais, e que envolvam empresas,
universidades e laboratórios.
Na dimensão cultural, os desafios
derivam do enfraquecimento do pensamento crítico e reflexivo e do esbatimento
dos valores imateriais e materiais relativos ao mar, que provocam a progressiva
degradação da mentalidade, da vontade e da identidade marítima nacionais. A sua
superação implica: desenvolver os sentimentos, as ideias e as formas de pensar
e de sentir do povo sobre o mar, através da promoção de uma literacia dos
oceanos, ativa e efetiva, desde o ensino básico ao superior; reforçar os meios
e incrementar a ação dos organismos académicos e científicos, públicos e
privados, cuja atividade contribui para o desenvolvimento dos recursos, das
capacidades e das competências marítimas de Portugal; fomentar a pesquisa, a
difusão e a preservação do património cultural integrado pela história,
ciência, letras e artes relativas ao mar.
Na dimensão ambiental, os desafios
advêm, essencialmente, das questões relativas à interação mar-terra, à poluição
e à sobre-exploração de recursos, geradoras de uma situação de crise que, por
afetar o desenvolvimento sustentável do planeta e as perspetivas de
sobrevivência da humanidade são, hoje, temas centrais da agenda internacional
dos oceanos. A sua superação implica: fomentar um compromisso das lideranças
mundiais e promover os mecanismos internacionais multilaterais, que limitem a
utilização irracional dos oceanos, preservando a sua sustentabilidade futura;
aperfeiçoar a regulamentação, a vigilância, a fiscalização e o controlo das
atividades industriais marítimas; conter os efeitos das perturbações
ambientais, em especial da poluição marítima, ações onde a educação, a
comunicação pública, a ciência, a tecnologia e a inovação são determinantes.
Na dimensão política, os desafios
decorrem do movimento global de expansão jurisdicional nos oceanos, que a
Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) veio permitir aos
Estados costeiros, proporcionando-lhes, pela extensão da plataforma
continental, uma nova zona de exploração económica. A sua superação implica:
salvaguardar os interesses e a singularidade marítima nacional nos fora internacionais
multilaterais com responsabilidades no mar, fomentando parcerias com Estados
arquipelágicos, tendo em vista preservar os direitos que nos são consagrados
pela CNUDM; manter um empenhamento ativo em organizações internacionais multilaterais,
na defesa do desenvolvimento sustentável, em parceria com outros países
interessados, gerando consensos positivos e capitalizando energias e benefícios
mútuos; promover a dimensão e a centralidade marítima de Portugal na comunidade
euro-atlântica, através da participação, ativa e qualificada, nas Nações
Unidas, na NATO, na UE, na CPLP e na Comunidade de Estados Ibero-Atlânticos
(CEIA).
Por último, na dimensão
securitária, os desafios são consequência de acidentes naturais e de outros
acidentes marítimos, de atividades ilícitas, de conflitos geopolíticos e de
ameaças militares e híbridas emergentes, que agravam os riscos, os perigos e as
perdas das pessoas, das organizações e dos Estados. A sua superação implica:
fortalecer a cooperação internacional, na capacitação de parceiros, na
utilização de sistemas de conhecimento situacional marítimo, na aplicação da
legislação e na realização de operações, privilegiando as atuações na regiões
da Macaronésia (formada pelos arquipélagos dos Açores, Madeira, Canárias e Cabo
Verde) e do Golfo da Guiné, em parceria com países aliados e amigos; articular
o planeamento e incrementar as capacidades públicas securitárias, ajustando-as
às responsabilidades acrescidas que decorrem da extensão da plataforma
continental, explorando o potencial do duplo-uso (militar-civil), no exercício
da autoridade do Estado no mar; reforçar a coordenação dos diferentes departamentos
públicos com responsabilidades securitárias no mar, promovendo sinergias
operacionais e envolvendo o setor privado.
A abordagem multidimensional,
acima apresentada, realça o contributo individual de cada campo de ação para o
ressurgimento de Portugal com o mar: a economia funciona como o motor deste
desígnio nacional; a cultura é a energia mobilizadora das pessoas e da vontade
coletiva; o ambiente serve de balança entre as aspirações presentes e a
sustentabilidade exigida para as gerações futuras; a política é o instrumento
que transforma a visão em prioridades de atuação; e a segurança representa a
condição de tranquilidade indispensável ao sucesso das restantes dimensões.
Na sua essência, a natureza
diversificada dos desafios marítimos nacionais e a responsabilidade
interdepartamental pela implementação das respetivas linhas de ação, demonstram
a necessidade da sua agregação formal em dois documentos estruturantes,
interdependentes e complementares:
·
A estratégia
nacional de desenvolvimento marítimo, focada nas dimensões económica, cultural,
ambiental e política;
·
A estratégia
nacional de segurança marítima, orientada para a dimensão securitária.
Assim deverá ser, porque o
ressurgimento com o mar só será possível garantindo a permanente coordenação,
orquestração e mútua potenciação entre o desenvolvimento sustentável e a
segurança efetiva.
A boa formulação das duas
estratégias preconizadas constitui um requisito indispensável para que Portugal
possa fazer pleno uso da fabulosa zona de exploração económica que é a sua
plataforma continental estendida. Todavia, de pouco ou nada servirá a
formulação de novas estratégias nacionais para o mar, por mais brilhantes que
sejam, se não formos capazes de as operacionalizar com sucesso, o que implica o
envolvimento comprometido das entidades públicas e privadas com
responsabilidades e atividades no mar, bem como a frequente monitorização dos
resultados e a consequente correção do rumo seguido.
Para isso, é fundamental
implementar, ao nível da Administração Central do Estado, metodologias e
processos de gestão estratégica, devidamente comprovados noutras organizações,
que garantam, simultaneamente, uma liderança centralizada e uma
responsabilização dos vários departamentos intervenientes na execução das
referidas estratégias. Só assim conseguiremos ressurgir com o mar, tarefa onde
todos necessitamos de nos envolver, porque sem o empenho coletivo dos
portugueses nada acontecerá de relevo, apesar dos esforços realizados por
pessoas notáveis que, individualmente, muito fazem neste importante domínio do
nosso futuro comum!
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