2022 não é só o ano do grande assalto de Elon Musk ao Twitter. Nem esse assalto é o grande acontecimento do ano, como poderá pensar quem só leia “redes sociais”. O ano de 2022 é um marco na história do século XXI. É o ano do colapso das certezas que dominavam o mundo. O ano em que aconteceu o que não era possível acontecer.
A guerra na Europa era algo não só impossível mas mesmo impensável. A senhora dona Merkel explicaria isso a qualquer transviado do “pensamento único”. E fá-lo-ia corroborada pelos seus colegas e amigos/inimigos (consoante os dias) do SPD e dos Verdes mais os seus vizinhos amestrados da Holanda, Finlândia e outros e ainda toda uma classe política “europeista” sempre pronta a papaguear uma “cassete” muito rodada.
Mas ainda a nuvem negra do “vírus chinês” não se tinha dissipado e já 2022 era o ano em que rebentava a guerra na Europa, com as maiores operações militares desde 1945. Uma guerra que dura há quase um ano e parece não ter fim à vista. Uma guerra muito à maneira russa, cujas armas maiores são a artilharia e o tempo. A artilharia que reduz infraestruturas e cidades do inimigo a cinzas (veja-se o que o marechal Jukov fez a Berlim em 1944/45). O tempo, essa dimensão de que Lénine tanto gostava e que o levou a formular o seu famoso “kto kogo”… E é com este “kto kogo” que a Europa se confronta na Ucrânia.
A inflação fazia também parte do passado. Impensável. Até os pobres dos bancos centrais que, desde há anos, procuravam desesperadamente atingir uma inflaçãozinha de 2% não conseguiam chegar a tanto. Desesperante. A inflação era, decisivamente, uma coisa do passado. Quando a retoma da actividade no pós-covid provocou um não controlado aumento de preços, todos estiveram de acordo: é um fenómeno passageiro e sem dimensão nem consistência. No último trimestre, porém, foi necessário corrigir a “cassete”. Afinal, o monstro estava à solta. Culpa da guerra na Ucrânia, culpa da insustentável subida descontrolada dos preços da energia e das matérias-primas. E assim outro “impossível” se concretizava: 2022 trazia uma inflação histórica como há décadas não se via e de que a maior parte da população da Europa não tem memória.
Mas não foi só de regressos do passado que 2022 se fez, também trouxe algumas amostras do futuro: disrupções nas redes globais em que (levianamente) se assentaram, nas últimas décadas, a economia e a sociedade (o medo agora é que, depois de ter cortado o gás, Putin corte, por exemplo, o GPS…). Não foi, porém, só nas “disrupções” que os limites e alçapões das “novas tecnologias” se revelaram. Também nas fintech e suas “seguríssimas” cripto-moedas, com um dos maiores escândalos financeiros de sempre. Sobre as disrupções, há quase 20 anos que o meu amigo John Robb disse o essencial, no seu “Brave New War”. Sobre as limitações e alçapões das “novas tecnologias”, o meu amigo Alain Bauer tem repetidamente dito também o essencial do que há a dizer. Portanto, quer sobre os regressos do passado ou quer sobre as amostras do futuro, só é surpreendido quem goste muito de surpresas…
De facto, todo o sistema geoeconómico a que pomposamente se chamou globalização assentava e era contido num quadro geopolítico que há vários anos tem vindo a dar mostras e sinais de esgotamento. Alguns desalinhados do “pensamento único” têm mesmo vindo, desde o início do século, a alertar para o regresso em força da geopolítica aos comandos. As elites políticas instaladas apresentam, porém, uma imensa incapacidade para ver tudo e qualquer coisa que não esteja prevista na sua “cassete”… E é assim que 2022 se tornou um ano histórico.