Sérgio Parreira de Campos
Só há uma coisa mais difícil do que pôr, na cabeça
de um militar, uma nova ideia, é tirar a antiga.”
Liddel Hart
Defendia Lidel Hart o fim da conscrição universal e a criação de um exército profissional, pequeno, bem treinado e dotado de equipamentos modernos, aptos para operar em qualquer Teatro de Operações. No âmbito da estratégia militar, relembrou ainda o papel histórico da Grâ-Bretanha e a sua longa experiência de guerra, prevalecendo o poder marítimo. Vem tudo isto a propósito da chamada “Carta dos Generais” que foi amplamente divulgada e se refere à reforma da “Estrutura Superior das Forças Armadas” que o Governo pretende implementar, apresentando razões de discordância face à proposta apresentada.Ou seja, está um conflito aberto entre os militares e o poder político, conflito este iniciado pelo Governo, o que parece grave e muito difícil de entender, dado que se trata de um conflito entre instituições fundamentais ao país e que, como tal, estão “condenadas” a entender-se.
Voltando à frase de Lidel Hart, só para dizer que foi escrita no início do século passado e, desde então tudo mudou. E também os militares.
Talvez o Governo não se tenha apercebido disso e, como tal, por tenha feito tudo como o fez, às escondidas.
Bom, para princípio de conversa, entendo dever dizer que o conteúdo da proposta do Governo não me choca, como hipótese possível de encarar a questão.
Chocam-me sim, outras coisas:
- Choca-me a marginalização e a secundarização a que as Forças Armadas têm vindo a ser sujeitas, de há longo tempo para cá;
- Choca-me a constante diminuição de recursos disponibilizados para as Forças Armadas, de há longo tempo para cá;
- Choca-me a constante falta de renovação do equipamento das Forças Armadas, que arrisca, por acumulação, a tornar-se impossível de reverter;
- Choca-me a constante degradação das perspectivas profissionais dos militares;
- Choca-me que o Governo entenda que quem mais sabe da matéria não deva ser ouvido;
- Choca-me que o Governo não tenha entendido que, em regimes democráticos, alterações como a presente exigem uma discussão aberta entre todos os interveninentes, um consenso alargado das forças políticas, e uma maior estabilidade temporal para se efectivarem.
- Choca-me que o Ministro da Defesa Nacional não tenha tido outros argumentos para responder à carta, a não ser enveredando pelo caminho da ordinarice.
Mas uma coisa me choca ainda mais do que tudo isto: É que não se enceta o processo de uma reorganização da estrutura superior das Forças Armadas só porque sim, só porque outros o fizeram. Além do mais esse é um frágil argumento pois se é possível apresentar exemplos de países que o fizeram, será sempre possível apresentar mais exemplos de outros que o não fizeram.
É que o problema não está aí, está noutro ponto que o Governo parece ignorar. O que está em causa é a relação que tem de existir entre a estratégia prosseguida pelo país e o papel que as Forças Armadas terão de desempenhar no desenvolvimento dessa estratégia e, consequentemente, qual a estrutura que as Forças Armadas devem ter para prosseguir esse caminho.
Só que, há muito tempo que o nosso país não tem uma estratégia adequada para o desenvolvimento do nosso imenso potencial, que tem de ser explorado no sentido de promover o desenvolvimento económico e social, e garantir a segurança na nossa área de interesse estratégico.
As Forças Armadas constituem o principal instrumento para a execução da estratégia mas têm de se articular com todos os sectores decisórios, de forma a que se potencie recursos que são escassos como por exemplo na vigilância do território e do espaço maritimo, na detecção e exploração de recursos subaquáticos ou na investigação e desenvolvimento tecnológico. Mas, no entanto adquirem-se lanchas de fiscalização marítima para a GNR, num claro desperdício de recursos.
Vejamos, para quem não tem uma estratégia, qualquer organização serve, o que é infelizmente o nosso caso. Então pensem primeiro, definam caminhos exequíveis e rentáveis e depois, e só depois, pensem nos meios adequados para dar corpo a essa estratégia, e alterem então o que for de alterar. Portanto, até lá, não mexam no que existe. Mas despachem-se, que já vamos muito atrasados!
Apenas umas palavras mais, agora para falar da chamada carta dos generais. Quanto a esta só lamento três coisas.
Primeiro que, quando os ex-Chefes exerceram os seus cargos, não tenham sabido bater o pé sempre que fosse caso disso. E todos nos lembramos de várias ocasiões em que o deveriam ter feito.
Segundo que, quando alguns exerceram os seus cargos tenham defendido situações contra as quais agora se mostram discordantes.
Terceiro que, para defender a sua actual posição, alguém tenha falado dos inconvenientes para a indústria de defesa, sabendo todos que as Forças Armadas sempre preferiram adquirir fora do que lançar desafios à nossa indústria de defesa. Porquê ? Responda quem souber.
Ou seja, e para terminar, não é por acaso que os portugueses continuam de há longo tempo a ambicionar viver um dia como “os outros”, embora tenham vindo apenas a ver essa esperança perpetuar-se porque poucos responsáveis existem, a vários níveis, que deixem de olhar apenas para o seu umbigo. E entendam isto como quiserem!